CARTA ABERTA AO SR. BASTONÁRIO DA ORDEM DOS ADVOGADOS PORTUGUESES
Tendo tomado
conhecimento do Parecer emitido pela Ordem dos Advogados, sobre os Projectos de
Lei n.º 278/XII (PS), 392/XII (BE) e 412/XII (PEV) que consagram,
respectivamente «a possibilidade de co-adoção pelo cônjuge ou unido de facto do
mesmo sexo e procede à 23.ª alteração ao Código do Registo Civil», a
«eliminação da impossibilidade legal de adoção por casais do mesmo sexo, primeira
alteração à Lei n.º 9/2010, de 31 de maio e segunda alteração à Lei n.º 7/2001,
de 11 de maio» e «Alarga as famílias com capacidade de adoção, alterando a Lei
nº 9/2010, de 31 de maio e a Lei nº 7/2001, de 11 de maio», os Advogados e
Advogadas subscritores da presente Carta Aberta pretendem desvincular-se, em
toda a medida, da posição assumida e assinada pelo Senhor Bastonário, sobre a
qual nunca foram ouvidos e da qual discordam, por entenderem ser uma posição de
carácter manifestamente discriminatório.
Sobre as afirmações
contidas no Parecer enviado pela Ordem dos Advogados, designadamente que «O
direito da criança a ser adoptada implica que essa adopção se faça em respeito
pelo princípio da família natural, ou seja, por uma família constituída por um pai
(homem) e uma mãe (mulher) e não com um homem a fazer de mãe ou com uma mulher
a fazer de pai. O desenvolvimento harmonioso da personalidade de uma criança
(um dos seus direitos fundamentais) implica a existência de referências
masculinas e femininas no processo de crescimento.», acrescentando-se que «os
casais do mesmo sexo têm muitos direitos, muitos dos quais, infelizmente, ainda
não estão sequer reconhecidos nas leis da República, mas não têm, seguramente
(nem devem ter) direito a adoptar, porquanto esse pretenso direito colide
frontalmente com o direito das crianças a serem adoptadas por uma família
natural.», Solicitando-se, a final, a reprovação dos vários projectos,
cumpre-nos dizer o seguinte:
Nos termos do artigo
13.º da Constituição da República Portuguesa, todos os cidadãos têm a mesma
dignidade social e são iguais perante a lei e ninguém pode ser privilegiado,
beneficiado, prejudicado, privado de qualquer direito ou isento de qualquer
dever em razão de ascendência, sexo, raça, língua, território de origem,
religião, convicções políticas ou ideológicas, instrução, situação económica, condição
social ou orientação sexual. Os n.ºs 1 e 3 do artigo 36.º da Constituição da
República Portuguesa determinam também que todos têm o direito de constituir
família e de contrair casamento em condições de plena igualdade e que os
cônjuges têm iguais direitos e deveres quanto à capacidade civil e política e à
manutenção e educação dos filhos. Consideremos ainda os artigos 67.º e 68.º da CRP.
Prevê o n.º 1 do artigo 67.º que a família [sem qualquer definição social ou
legal de família], como elemento fundamental da sociedade, tem direito à
protecção da sociedade e do Estado e à efectivação de todas as condições que
permitam a realização pessoal dos seus membros. Que, do mesmo modo, o artigo
68.º estabelece que os pais e as mães [individualmente considerados!]
têm direito à protecção da sociedade e do Estado na realização da sua insubstituível
acção em relação aos filhos, nomeadamente quanto à sua educação, com garantia
de realização profissional e de participação na vida cívica do país,
constituindo a maternidade e a paternidade valores sociais eminentes.
Tais artigos não
podem ser analisados separadamente, como faz o Parecer da OA, senão como um
todo, um continuum jurídico interligado e interdependente que não
determina qualquer concepção de família ou que a maternidade e a paternidade
sejam valores analisados apenas enquanto complementos (veja-se, aliás, a legislação
laboral e da segurança social, muito clara nesta matéria).
A Lei n.º 9/2010, de
31 de Maio, que consagra o casamento civil entre pessoas do mesmo sexo, dispõe,
no seu artigo 5.º que todas as disposições legais relativas ao casamento e seus
efeitos devem ser interpretadas à luz da mesma lei, independentemente do género
dos cônjuges, sem prejuízo do disposto no artigo 3.º que determina, no n.º 1,
que as alterações introduzidas não implicam a admissibilidade legal da adopção,
entendimento que julgamos antitético com o próprio espírito da lei, cujo
partido autor (PS) pretende alterar.
Também a Lei n.º
7/2001, de 11 de Maio, veio consagrar no nosso ordenamento jurídico medidas de
protecção das uniões de facto, diploma alterado e republicado pela Lei n.º
23/2010, de 30 de Agosto. Nos termos do seu artigo 1.º, a união de facto é a
situação jurídica de duas pessoas que, independentemente do sexo, vivam em
condições análogas às dos cônjuges há mais de dois anos.
O regime jurídico da
adopção encontra-se consagrado no Código Civil, nos artigos 1973.º a 2002.º.
Nos termos do artigo 1974.º, a adopção visa realizar o supremo interesse da
criança e será decretada quando apresente reais vantagens para o adoptando, se
funde em motivos legítimos, não envolva sacrifício injusto para os outros
filhos do adoptante e seja razoável supor que entre o adoptante e o adoptando se
estabelecerá um vínculo semelhante ao da filiação.
No artigo 1979.º e
seguintes do Código Civil determina-se que podem adoptar plenamente:
Duas pessoas casadas, ou a viverem em união de facto, há mais de 4 anos,
se ambos tiverem mais de 25 anos e menos de 60 anos;
Qualquer pessoa que tenha mais de 30 anos, ou mais de 25 anos se o adoptado
for filho do cônjuge.
Relativamente ao
processo de adopção restrita, estabelecido no artigo 1992.º e seguintes do
Código Civil, estipula-se que neste caso podem adoptar:
Qualquer pessoa com mais de 25 anos e menos de 60 anos;
Qualquer pessoa com mais de 60 anos, só pode adoptar se a criança ou jovem
lhes tiver sido confiado antes de fazer os 60 anos ou se for filho do cônjuge.
Isto é, não existe
qualquer referência à orientação sexual de quem pretende adoptar, conquanto
preencham os requisitos ali determinados.
Por outro lado,
importa igualmente sublinhar que o artigo 69.º da Constituição estabelece que
«as crianças têm direito à protecção da sociedade e do Estado, com vista ao seu
desenvolvimento integral, especialmente contra todas as formas de abandono, de
discriminação e de opressão e contra o exercício abusivo da autoridade na
família e nas demais instituições». Este direito e o superior interesse da
criança devem, obrigatoriamente, enformar toda a acção do Estado e das demais
instituições, nas suas políticas e na sua acção, seja no domínio da protecção
da família, seja no domínio da adopção. Por outras palavras, o Estado e as
demais instituições devem concretizar o preceituado no artigo 69.º, colocá-lo
em prática, traduzi-lo para o ordenamento jurídico, em todas as suas esferas de
acção. Ora, nada no referido artigo 69.º estabelece ou permite inferir que a
protecção do superior interesse da criança e dos seus direitos justifique a discriminação
dos pais e adoptantes homossexuais ou bissexuais. Aliás, muito pelo contrário,
a Constituição é clara ao estabelecer, sem qualquer limitação, que as crianças
devem ser salvaguardadas de todas as formas de discriminação, pressão e de
exercício abusivo da autoridade. Que o direito da criança à protecção do Estado
e da sociedade tem como objectivo principal, permitir o desenvolvimento integral
da criança. E em nenhuma disposição dos artigos 67.º a 69.º da Constituição é
feita qualquer referência à orientação sexual dos pais ou adoptantes, o que só
pode significar que esta é irrelevante para os efeitos desses mesmos preceitos
constitucionais.
Portanto, a
manutenção desta discriminação legal, que restringe os direitos dos cidadãos
homossexuais e bissexuais, apenas se justificaria (como, aliás, sucede com
qualquer restrição a qualquer direito ou liberdade fundamentais) se os
referidos direitos daqueles cidadãos colidissem, prejudicassem ou afectassem
negativamente o superior interesse da criança ou o seu desenvolvimento
integral. Não nos parece que assim seja, na senda da opinião dos técnicos que investigaram
e estudaram esta questão (tal como referido infra). Mais: nada no
referido Parecer permite sustentar a conclusão de que a co-adopção ou a adopção
por casais homossexuais ou bissexuais coloque em perigo, prejudique ou afecte
de forma negativa o superior interesse da criança ou o seu desenvolvimento
integral.
Como referimos infra,
os estudos e os relatórios dos técnicos competentes para avaliar esta
problemática demonstram, com toda a clareza, que não existe justificação para a
manutenção desta discriminação legal, dado que o desenvolvimento da criança não
é afectado negativamente pela orientação sexual dos seus pais ou adoptantes.
Que, aliás, esta discriminação pode prejudicar o desenvolvimento integral da
criança. E, ao contrário do que sucede com o Parecer, os referidos estudos e
relatórios baseiam-se em fundamentos e elementos sociológicos e científicos.
Com efeito, o Parecer invoca alguma fundamentação sociológica, mas não concretiza,
determinando em abstracto a necessidade de referenciais femininos e masculinos
na educação de uma criança, o que, na ausência de qualquer fundamentação
sociológica, apenas se pode considerar mera opinião derivada de concepções
pessoais. E, mais grave, defende o Parecer uma discriminação legal, uma
restrição de direitos protegidos e assegurados pela Constituição a todos os cidadãos,
sem apresentar fundamentação suficiente ou adequada para tal.
Com efeito, em modo
diametralmente oposto ao afirmado pela OA, o Instituto Superior de Psicologia
Aplicada afirmou em documento de Janeiro de 2013 que, do ponto de vista do
desenvolvimento emocional e psicológico das crianças, não há motivos que
justifiquem a impossibilidade legal de nascerem ou de serem educadas quer por um
casal do mesmo sexo quer por uma pessoa singular de orientação sexual
homossexual ou bissexual.
Em adição, o que é
aliás extremamente importante, foi demonstrado, por investigação científica
realizada recentemente com famílias de casais do mesmo sexo pelo Comissariado
para os Direitos do Homem do Conselho Europeu e pelo Parlamento Europeu, não
existirem diferenças em áreas fundamentais do desenvolvimento destas crianças
quando comparadas com outras que crescem em famílias com pais de sexo oposto.
De facto, relatórios
técnicos do Comissariado para os Direitos Humanos do Conselho Europeu, no que
diz respeito às práticas de discriminação de pessoas LGBT, não só corroboram
estes pareceres, como descrevem a forma como estas práticas discriminatórias exercem
pressão e stress acrescido nas famílias de casais do mesmo sexo e nas crianças
com dois pais ou duas mães, situação esta que atenta contra o bem-estar destas
crianças. (cfr. Parecer do Instituto Superior de Psicologia Aplicada, enviado à
Assembleia da República, pág. 2.)
Sublinhe-se ainda
que o Parlamento Europeu tem vindo a defender, no quadro de diversas resoluções
sobre o respeito pelos direitos humanos na União Europeia, a supressão da
discriminação e da desigualdade de tratamento de que ainda são vítimas os homossexuais
apelando aos Estados-Membros para que reconheçam a legalidade dos direitos dos
homossexuais, incluindo o direito à celebração de contratos de união civil e de
casamento entre pessoas do mesmo sexo, bem como o direito à adopção de
crianças.
A posição do PE
relativamente a este último aspecto foi recentemente confirmada na Resolução,
aprovada em 4 de Setembro de 2003, sobre a situação dos direitos fundamentais
na União Europeia em 2002, que, evocando o respeito pelo princípio da igualdade
e da não discriminação com base na orientação sexual, solicita aos Estados-Membros
“a abolição de qualquer forma de discriminação – legal ou de facto – de que
ainda são vítimas os homossexuais, nomeadamente em matéria de direito ao
casamento e à adopção de crianças”.
Nestes termos,
enquanto Advogados e Advogadas, defensores da legalidade democrática, da
Constituição da República Portuguesa e das leis nacionais e internacionais, em
nome da igualdade, recusamos qualquer identificação ou conotação com o parecer
da Ordem dos Advogados, entendendo que este não respeita os princípios enformadores
do Direito, carece de fundamentação factual de suporte e ilegitimamente assume
uma posição que, certamente, uma parte muito significativa dos Advogados deste
país não subscreverá.
Atentamente,